E o que pensam os doadores de material genético
Suzana é uma mulher miúda de 40 anos com um sorriso tão largo quanto o desejo de gestar uma criança. Psicóloga, ela adiou o sonho por causa da correria profissional, da situação financeira, das questões familiares. No início deste ano, se preparou para anunciar ao mundo que tinha dois bebês em formação na sua barriga. “Estou grávida!”, revelou à irmã, que ficou verde como a cor dos olhos da outra. “De quem?”, quis saber.
A curiosidade se justifica: há 13 anos, Suzana mantém um casamento com uma professora de Educação Física. O pai dos gêmeos é um biólogo de cabelos ondulados, 1,76 m, 80 kg, origem alemã, olhos claros, sem religião, amante de ciclismo e futebol, interessado em idiomas. Mais conhecido como “446”, número que lhe foi conferido no catálogo do banco de sêmen. Suzana e o 446 nunca fizeram sexo na verdade, os dois jamais se encontrarão.
Mas é dele a semente que fecundou nela o sonho da maternidade. E são doadores como ele que ajudam tantos outros casais que não podem ter filhos ou mulheres solteiras a realizar o desejo de gerar uma vida. Um assunto delicado, mesmo para quem decidiu recorrer ao método e que, por isso, pediu para não ser identificado nesta reportagem.
Escolha difícil
Como todos os homens que doam esperma no Brasil, o 446 não ganhou um centavo pelo gesto. Ele se voluntariou no Pro-Seed, o maior banco de sêmen do país, por puro altruísmo. O pagamento de doadores é proibido para não gerar um mercado paralelo, por exemplo, de órgãos. Não há uma lei específica sobre o tema, as diretrizes vêm do Conselho Federal de Medicina (CFM). Então, o generoso 446 passou primeiro por uma triagem que inclui exames clínicos e laboratoriais. Como foi aprovado, voltou dias depois para uma saleta discreta, munido de um pequeno frasco no qual ejaculou diretamente. Cada jato de um mililitro deve conter 80 milhões de espermatozoides. Como é de praxe, a amostra ficou seis meses em quarentena por causa da janela imunológica de possíveis viroses. Só depois foi liberada para aparecer no catálogo da empresa, que fornece material genético sob encomenda para 250 instituições credenciadas.
Foi então que Suzana descobriu o 446, por meio da clínica IPGO, em São Paulo. Feitas as avaliações médicas e hormonais, ela recebeu meia dúzia de papéis com os candidatos a “pai”. Na tabela, não havia nome nem foto, já que assegurar o anonimato é regra básica. As descrições se restringiam a tipo sanguíneo, altura, peso, cor dos olhos, cor e textura do cabelo, cor da pele, estrutura óssea, raça, origem étnica, profissão, hobby e religião.
Orientais e afrodescendentes, distantes do fenótipo da paciente, foram previamente excluídos dessa lista. Uma das recomendações dos médicos é aproximar as características físicas do doador com a receptora. Zonza, Suzana viajou para o interior com a lista e levou três dias para filtrar os mais interessantes. Recorreu até à numerologia. “Estava debaixo das árvores enquanto decidia: o ambiente bucólico deve ter favorecido o biólogo escolhido”, diz, aos risos.
Ela organizou alguns por ordem de prioridade e pediu opinião da esposa. Como o selecionado havia sido reservado por outra paciente, elas assinaram o cheque para segurar a segunda opção – o 446. Ele não é avisado quando compram do laboratório uma de suas amostras e, portanto, não sabe se tem um ou 15 filhos espalhados por aí.
Em janeiro, Suzana fez uma indução de hormônios e teve quatro óvulos colhidos para a fertilização in vitro com os espermatozoides do 446. Após uma semana da inseminação e de repouso absoluto, veio a notícia de que dois embriões tinham vingado. “É incrível como a ciência evoluiu e tem essa capacidade de nos ajudar”, diz Selma, esposa de Suzana, 47 anos. As duas decoraram o quarto dos bebês, mas Yuri morreu no sétimo mês de gestação e, até o fechamento desta edição, elas aguardavam o nascimento de Agatha, previsto para outubro.
Rompendo barreiras
O doador pode contribuir de acordo com sua disponibilidade, seja uma vez por mês ou por semana. O sêmen, que fica armazenado num botijão de nitrogênio líquido a 196ºC negativos, dura até 30 anos. A empresa cobra cerca de R$ 1.500 pela tecnologia utilizada no congelamento de uma amostra e encaminha o mate-rial para a clínica que o requisitou. É comum que os casais reservem outras amostras e deixem congeladas para ter mais filhos com o passar dos anos. De acordo com a Pro-Seed, cerca de 30 famílias têm mais de uma criança gerada com material do mesmo doador. O CFM, órgão que regula a prática da medicina reprodutiva, determina que um doador pode ter, no máximo, dois filhos por milhão de habitantes na mesma região. A precaução evita a chance de casamento consanguíneo, entre irmãos que não sabiam do parentesco.
Embora ainda seja um tabu, a procura por material genético de doadores cresce na medida do acesso à informação. “Existem mais clínicas, o brasileiro tem maior poder aquisitivo e o preço do tratamento diminuiu”, afirma Arthur Dzik, diretor científico da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. Houve também uma mudança no perfil dos clientes. Segundo o Pro-Seed, são 90 solicitações por mês. Antes de 2005, os casais heterossexuais em que o marido sofria de alguma doença genética ou infertilidade representavam 98% da demanda. Esse percentual caiu para 65%, sendo o restante bem dividido entre mulheres interessadas na produção independente e casais gays.
Por que não um amigo?
Essas pessoas preferem recorrer a um desconhecido, em vez de pedir ajuda a um amigo ou parente, para que não haja nenhum vínculo com a futura criança. “É a garantia de que ninguém vai exigir nada ou interferir na vida dela”, diz Vera Brand, fundadora do Pro-Seed. Fora isso, há quem se preocupe com a confusão que essa notícia poderia causar. Selma, por exemplo, avaliou a possibilidade de conversar com um de seus irmãos sobre a doação de sêmen para Suzana. Ela diz que teria abertura para fazer um pedido desses, mas desistiu ao pensar nas consequências. “Na cabeça da criança, ele seria um tio ou um pai?”, diz. Especialistas acreditam que o anonimato traz vantagens para ambos os lados. Com base nele, é mais fácil convencer cidadãos de que ninguém vai bater à porta um belo dia gritando “papai”, pedindo convívio ou pensão alimentícia.
Ainda assim, é uma tarefa muito complicada. O próprio Pro-Seed reúne apenas 120 doadores, uma quantidade bem abaixo do ideal. A realidade é outra nos Estados Unidos, responsável pelo maior banco mundial e exportador de material genético para mais de 60 países. Lá, a permissão para pagar voluntários faz com que muitos estudantes recorram aos bancos de sêmen com o intuito de ampliar a renda.
Os norte-americanos fizeram disso um verdadeiro negócio. Colocam à venda detalhes atrativos sobre o doador, como fotos de perfil na contraluz, áudio, histórico de doenças familiares etc. A impessoalidade do processo brasileiro, com informações concisas e disponíveis em uma tabela, é uma crítica constante entre as mulheres. Aos 32 anos, a advogada Daniela buscou a clínica Huntington (SP) para realizar o desejo da produção independente antes que a idade se transformasse num empecilho. “Achei horrível decidir quem seria o pai do meu filho daquele jeito frio”, diz. A psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar, ressalta que as mães que passam por esse processo devem ter a convicção de que a escolha se refere apenas ao pai biológico. “Ser pai é muito mais amplo do que ser dono de um sêmen”, afirma Vera. “Ela poderá escolher outro homem para ser pai de verdade desse filho, como acontece com as crianças adotadas (ou criá-lo sozinha).”
Daniela foi casada por oito anos, mas as circunstâncias profissionais adiaram a maternidade. Após o divórcio, ela teve alguns relacionamentos, mas nunca colocou os parceiros contra a parede. “Uma coisa é achar um namorado. Outra, um pai para o meu filho.” Desde 2011, ela amadurecia a ideia de recorrer a um banco de sêmen, no entanto, imaginou que conseguiria ver ao menos foto dos doadores. Mesmo frustrada, comprou uma amostra brasileira e fez a fertilização in vitro. Os oito embriões estão congelados e devem ser doados para pesquisa, já que ela descobriu que poderia ter mais informações dos homens em bancos estrangeiros, como fotos.
Depois de uma longa pesquisa pela internet, encontrou um com características semelhantes às suas e importou a amostra. Os cinco embriões fertilizados com o sêmen americano ainda não foram transferidos para o útero de Daniela porque ela tem um foco de endometriose. “Estamos tratando para deixar a doença inativa e implantar os embriões”, afirma a geneticista Thaís Cury, da Huntington. Ela explica que cada vez mais as mulheres procuram congelar os óvulos até encontrar o parceiro ideal. Isso porque a idade da mulher na hora do congelamento é mais importante que a idade em que resolve engravidar. Apenas 20% delas acabam recorrendo à produção independente, como Daniela.
Contar ou não contar...
A advogada espera, ansiosa, pela transferência dos embriões. Pais e amigos não sabem do seu investimento financeiro e emocional. Se não der certo, por qualquer motivo, a paciente não recebe o dinheiro de volta e precisa de um intervalo mínimo de dois meses para recomeçar o ciclo. Daniela bancou sozinha a decisão e prefere manter segredo até que o teste de gravidez dê positivo. Medo de frustrar expectativas – e, talvez, brigar ou ser demovida da ideia. “A reação geral será difícil no começo, mas valerá a pena depois”, diz. O dilema de revelar ou não para a sociedade é bastante comum, tanto que as clínicas de medicina reprodutiva oferecem consultas com psicólogos.
Segundo o diretor da Fertility (SP), Edson Borges Jr., em geral, as mulheres solteiras não têm muita alternativa senão contar. Já os casais heterossexuais não costumam dividir a decisão com ninguém. “Nosso consenso foi manter o sigilo porque não entenderiam e quisemos evitar a falação”, diz o empresário Cláudio, 48 anos. Ninguém da família sabe que ele não pode ter filhos porque foi obeso durante muitos anos. Além da má alimentação, outros fatores como drogas e estresse podem causar infertilidade. O organismo de Cláudio deixou de produzir espermatozoides e, embora ele tenha reduzido o peso com chances de reverter o quadro fisiológico, não dá para esperar. A mulher dele está com 42 anos, a apenas três da idade considerada limite para esse tipo de tratamento. Juntos há 15 anos, o casal descartou a hipótese de adoção porque queria passar por tudo que envolve a experiência da gravidez. Ela só temia que o marido se chateasse porque o filho teria o sêmen de outro homem.
Cláudio reconhece estar abrindo mão de um lado seu, mas superou o sacrifício. “O desejo de ser pai é muito maior que essas questões morais: quero segurá-lo nos braços e acompanhar seu crescimento”, afirma. Cláudio e Ana escolheram um doador com traços bem parecidos com os dele, porém, a primeira tentativa falhou. Não houve como ignorar a tristeza da expectativa frustrada. Agora estão no intervalo exigido antes de retomar o tratamento. CRESCER perguntou a ele qual o sentimento em relação ao homem que doou o material genético. Cláudio fez uma pausa – não havia refletido sobre isso. Segundos depois, disse que sentia gratidão, da mesma forma que as pessoas quando recebem um órgão de alguém que nunca viram.
Suzana e Selma partilham do mesmo ponto de vista. Elas não têm curiosidade sobre o pai biológico de seus filhos, não ansiaram conhecê-lo em nenhum momento. “Ele foi um colaborador precioso, mas apenas um colaborador”, explica Selma. O foco das mães está no desenvolvimento e saúde da criança e no caráter dela. Quanto à primeira preocupação, todos os exames possíveis foram feitos. Quanto à segunda, não há garantias. Mas nunca há, nem em uma relação convencional e sólida. Seria leviano prever o caráter de alguém somente com base na conduta de seus pais. Educação e influências do ambiente parecem mais determinantes. A criança, por exemplo, nasce sem preconceitos e seus tutores é que vão apresentar o mundo da forma como eles veem.
A verdade sobre a origem
A maneira como esse filho vai lidar com a questão de sua origem será sempre uma incógnita, mas certamente será mais fácil se os pais estiverem preparados. Muitos apostam que, se mantiverem o segredo, o filho não desconfiará – é o mesmo drama de quem adota. Suzana, Selma e Daniela pretendem falar a verdade assim que os filhos tiverem maturidade para compreender. Cláudio não chegou a uma conclusão com a esposa.
Independentemente da decisão, é bom lembrar que a vida é cheia de imprevistos. A criança acaba captando uma ou outra coisa e especula com os elementos confusos que tem à disposição. Psicólogos sugerem dar respostas aos poucos, sem entrar em detalhes e conforme a necessidade infantil. O fundamental é mostrar o quanto aquele filho foi desejado – a ponto de envolver outras pessoas legais, que emprestaram uma “semente” para que ele viesse ao mundo. “Dentro de casa, a criança deve ter o suporte e os subsídios para se defender diante do que poderá enfrentar no mundo lá fora”, diz a psicanalista Vera Iaconelli. Por esse motivo, ela acrescenta que os pais devem se perguntar do que têm vergonha e como estão encarando os próprios preconceitos.