A Organização Mundial de Saúde (OMS) adverte: a cesariana pode fazer mal à saúde. Um aviso como esse, inexistente é claro, bem poderia ser afixado nos consultórios médicos e maternidades.
A operação cirúrgica que deve seu nome, segundo a lenda, ao nascimento de um dos imperadores romanos Júlio César, vem dominando o mundo, exatamente como costumavam fazer esses antigos e poderosos senhores. O aumento do número de cesarianas é um fato mundial e se deve sobretudo ao avanço tecnológico, facilitador de um diagnóstico tão acurado das condições da criança no útero que, em alguns casos (em centros mais avançados), é possível até mesmo curar certas doenças fetais.
Se antes o feto já se sentia protegido e à vontade em seu elemento, o ventre materno, hoje ele está ainda mais cercado de cuidados, e quase se pode dizer que sua saúde estará garantida ao nascer. Mas essas técnicas inovadoras não justificam, por elas mesmas, o excessivo número de cesarianas no Brasil.
A afirmação é do médico especialista em ginecologia e obstetrícia Dr. Pedro Paulo R. Monteleone, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CRM): "As novas técnicas levam a um aumento das cesarianas de 10 a 20 por cento, em geral, mas há regiões no Brasil em que esse índice atinge 80 por cento dos partos, um absurdo", reprova o professor aposentado da Escola Paulista de Medicina. A análise dos dados revela: em média, realizam-se 558 mil cirurgias desnecessárias por ano, que acarretam um desperdício de 84,3 milhões para o SUS (Sistema Único de Saúde) e a ocupação de mais de 1.600 leitos hospitalares por dia.
O "trauma" do parto normal
As razões para esse aumento desproporcional no número de partos cirúrgicos são históricas, e a imprensa teve seu papel nisso. A partir do final da década de 60, a introdução da ultra-sonografia tornou a cesariana mais segura para a mãe e a criança. Além disso, as mudanças de comportamento incentivadas pela Revolução Sexual e o Movimento Feminista geraram mulheres mais ativas e exigentes.
Era comum lermos, em grandes reportagens de jornais e revistas, declarações em que as mães testemunhavam a favor da cesariana, dizendo que seu filho nasceria numa data que lhe seria conveniente, não haveria correrias, a criança nasceria sem o "trauma" do parto normal, etc. A essa visão algo distorcida dos fatos veio aliar-se a conveniência dos médicos: um trabalho de parto normal pode tomar de 4 a 8 horas (e às vezes mais) do tempo deles, enquanto numa cesariana, em condições normais, tudo se resolve em pouco mais de uma hora.
Assim, como diz a expressão popular, uniu-se o útil ao agradável, e foram criadas as condições para que a cesariana sem indicação precisa, predominasse.
Insegurança desgaste
Todos sabemos das más condições da saúde no Brasil. Volta e meia assistimos nos telejornais a reportagens que mostram o péssimo atendimento dispensado à população. No que se refere à assistência obstétrica, essa situação reflete principalmente duas coisas: as deficiências na formação dos médicos (por sua vez, conseqüência direta do descaso votado há décadas à educação) e a má remuneração desses profissionais. Isto resultou, por um lado, em médicos inseguros quanto aos procedimentos mais simples do parto normal e, por outro, desgastados por serem forçados a ter diversas atividades, alguns trabalham em três ou mais locais, a fim de garantirem sua subsistência.
Em resumo, mais lenha para a fogueira da opção pela cesariana: mais rápida, e em termos, mais segura. "Quando as coisas não vão bem num parto normal, a família chega e diz: "Se tivesse sido feita cesariana...", explica Monteleone. "Agora, se acontece alguma coisa com a criança nascida de cesariana, a família já não culpa tanto o médico, e diz: "O médico fez de tudo, até cesárea...", completa, revelando que mais esse elemento de pressão sobre o médico tende apenas a tornar o parto cirúrgico ainda mais comum do que já é.
Quando fazer a cesariana
Em que pesem as técnicas avançadas - a nova anestesia para o parto normal, que atenua as dores das contrações, para citar uma delas - a verdade é que, na assistência obstétrica, a maior novidade continua sendo o ultra-som, cada vez mais sofisticado. Graças a ele e a um acompanhamento médico adequado, a mulher que entra em trabalho de parto precisará apenas de uma equipe de saúde bem preparada para assisti-la. Tudo isto possibilitará a correta indicação de se fazer ou não o parto cirúrgico, ou seja, a cesariana não deve ser decidida antes do trabalho de parto, a não ser que se verifiquem qualquer das seguintes...
Indicações precisas:
- A posição da criança não é adequada (ao invés de ela estar de cabeça para baixo, está sentada).
- Não houve boa dilatação do colo do útero.
- A criança é muito grande.
- A bacia da mãe é muito pequena, não dá passagem para a criança.
- Durante o trabalho de parto, surge o sofrimento fetal (demora que pode causar falta de oxigenação), quando esperar o desenrolar do trabalho de parto pode ser prejudicial à saúde do bebê.
- Descolamento prematuro da placenta (que ocasiona hemorragias e falta de oxigenação).
- Encurtamento do cordão umbilical.
- Mãe de primeiro filho idosa.
- Eclâmpsia ou pré-eclâmpsia (acesso convulsivo da parturiente).
- Insuficiência placentária.
- Sensibilização do feto pelo fator Rh.
O pré-natal
Embora durante o pré-natal não se tenha, na grande maioria dos casos, a indicação de que o parto será ou não normal, em algumas situações é possível saber de antemão o que será mais conveniente. Dessas situações, as mais comuns são quando a mãe sofre de pressão alta ou é diabética, condições em que a cesariana será obrigatória. Fora destas e das antes descritas, no entanto, o correto é esperar o início do trabalho de parto e aguardar sua evolução. Se tudo correr bem, não há motivo para realizar a cesariana.
Transformar gratuitamente (isto é, sem indicações precisas) um ato fisiológico, o parto normal, em ato operatório, parto cirúrgico, traz muitas desvantagens para a mulher. Entre elas, destacamos a possibilidade da chamada infecção puerperal ou pós-parto, 30 a 40 vezes maior numa cesariana que no parto normal. Esclarecer para conscientizar.
O Brasil é o campeão mundial em parto cesariano. Enquanto, em países mais desenvolvidos (Estados Unidos, Canadá, etc.), o aumento desses índices é visto com grande preocupação, aqui, pouco ou quase nada se faz para reverter esse estado de coisas. Embora já tenha incluído o pagamento da anestesia para o parto normal na tabela de assistência ao parto do SUS, o Ministério da Saúde tomou outra atitude que é, no mínimo, discutível do ponto de vista de se encontrar uma solução para o problema: se um hospital ultrapassar os 40% de cesarianas na quantidade de partos, o que exceder esse índice não será reembolsado pelo SUS. "Acho que essas atitudes não dão resultado", pondera Monteleone.
"Se os problemas fossem resolvidos somente pela legislação, teríamos uma saúde de Primeiro Mundo", acredita o médico. Ainda segundo ele, a melhoria da assistência obstétrica no Brasil não é uma questão de implementação de alta tecnologia: "A assistência ao parto é simples, e a introdução dessa tecnologia vem fazendo com que os médicos se esqueçam disso", observa. Há cerca de dois anos, o CRM realizou no Estado de São Paulo, com o apoio do Conselho Federal de Medicina, da Secretaria de Saúde do Estado, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher e de algumas secretarias municipais, a campanha "Natural é o Parto Normal".
Através da realização de simpósios com a participação de profissionais da área de saúde e das respectivas comunidades em que foi apresentada, essa campanha visou esclarecer a população em geral quanto à importância de se realizar o parto cirúrgico somente quando se verificarem as indicações precisas apresentadas nesta reportagem. "Levamos isto para mais de 50 cidades e, em alguns lugares, já podemos notar os resultados. Mas é lógico que não se vai reverter uma situação que levou quatro décadas para se estabelecer num simples passe de mágica", analisa o presidente do CRM.
"Procurar outra opinião"
Para todas as mães, o conselho do Dr. Monteleone, baseado em seus 34 anos de experiência em ginecologia e obstetrícia, é categórico: "A gestante deve, durante o pré-natal, conversar sobre a dinâmica do parto com o médico, procurando desfazer dúvidas. Se o médico indicar a cesárea e ela não ficar muito convencida disso, ela deve procurar outra opinião", recomenda. "Toda mulher deve procurar ter um parto normal ou pelo menos entrar em trabalho de parto e tentar; se não for possível, a operação cesariana não é um insucesso, é a resolução do problema.
O que não é aconselhável é fazer uma cesariana sem que haja necessidade", arremata. Para além de todas as discussões a respeito, o fundamental é que a mamãe e o bebê desfrutem de toda as informações e infra-estrutura necessárias para que possam, uma continuar e o outro nascer saudável. Somente assim "parto" deixará de ser sinônimo de coisa difícil e passará a ser visto como deve ser: um fato normal da vida.