É cada vez maior o número de famílias que deixa o carro na garagem para aderir à bicicleta em seus trajetos cotidianos. Fique por dentro dessa nova realidade e das condições de segurança para quem quer pedalar com o filho
A Produtora de vídeos Silvia Ballan, 41, leva a filha Marina, 5, para cima e para baixo em sua garupa. A cena é clássica: seu filho implora para não largar o banco da bicicleta e você jura que vai estar sempre ao lado dele. O volante ziguezagueia por alguns instantes e a queda parece inevitável, não fosse por seu apoio. De repente, ele começa a pedalar sozinho, firme e sua ajuda já foi deixada pelo caminho. Ele olha para trás, mas você está distante. Nesse momento, é difícil dizer quem está mais feliz.
Pense agora em todos os brinquedos do seu filho. Difícil achar muitos que proporcionem a mesma relação de cumplicidade e compartilhamento de uma bicicleta pelo menos até o momento mágico em que seu pequeno aprende a pedalar por conta própria. É uma história que pode muito bem ter começado anos antes, quando seu bebê ainda engatinhava e ia na sua garupa e que poderá ser lembrada futuramente quando ele for pedalando ao trabalho ou à escola.
Famílias de bicicleta soam como um disparate em um país que bate seguidos recordes de vendas de carros. Apenas soam, porque nos próximos anos elas serão cada vez mais frequentes, principalmente nas grandes cidades. Por isso, não se assuste se um dia estiver em seu carro, parado no trânsito engarrafado, e aparecer ao seu lado uma ciclista com uma filha pequena atrás, fazendo o seguinte comentário: “Nossa, não sei como vocês conseguem ficar tanto tempo presos no congestionamento”.
De mãe para filha
A autora da frase pode ser a produtora de vídeos Silvia Ballan, 41 anos, mãe de Beatriz, 15, e Marina, 5. A adolescente já vai à escola a pé, mas a caçula ama ir de bicicleta com a mãe. Presa no banco traseiro, Marina vai dando “tchauzinho” para os motoristas que a observam circulando pelas ruas do bairro do Itaim, em São Paulo. Silvia aproveita para conversar com a filha, dando pequenas lições de cidadania. “É comum ouvi-la dizer: ‘Mãe, olha aquele carro em cima da faixa. E aquele ônibus passou no farol vermelho. Que feios’”, conta a produtora.
Da garupa da mãe, Marina dá lições de cidadania para motoristas.
Silvia foi presenteada com sua primeira “magrela” aos 5 anos. Aos 14, ganhou um modelo mountain bike e teve autorização dos pais para ir à escola com o irmão mais velho. Não havia perigo, as ruas paulistas eram outras nos anos 1980. Quando Bia nasceu, em 1998, ela a levava na garupa. Sentia-se um extraterrestre diante dos outros pais que transportavam seus filhos de carro. Naqueles anos, com a chegada de veículos importados ao país, começou a sentir que a convivência nas vias estava ficando mais difícil. Mas preferiu continuar a ser uma ET consciente. Há cinco anos, vendeu o automóvel, que representava despesas altas para a família.
Sorte da Marina, que ganhou 20 minutos de passeios diários de bicicleta com a mãe, entre a casa e a escola. Silvia leva outros cinco minutos para chegar ao trabalho. Com a Bia, a produtora sempre usava a rua. Agora, com a filha mais nova, já houve ocasiões em que, sentindo-se insegura, teve de sair do asfalto, para evitar o perigo. “Fico chateada porque a calçada é do pedestre”, explica. Silvia não esconde que fica apreensiva em transportar Marina, sobretudo ao comparar a aventura atual com a época em que levava a Bia à escola. “Há cada vez mais carros rápidos nas ruas, e eles estão ocupando mais os espaços.” O receio de Silvia tem fundamento e é reiterado pelo alerta de quem lida diariamente com a realidade dos acidentes de trânsito nos pronto-socorros: “Embora não haja estudos que confirmem, nossa percepção é a de que, com mais gente andando de bicicleta na cidade, aumentou o número de acidentes”, avisa o ortopedista pediátrico Luiz Carlos de Andrade Junior, do Hospital Israelita Albert Einstein (SP).
Por isso, hoje Silvia tem de redobrar a cautela. Regra para transitar entre automóveis velozes e apressados? “Ando devagar, porque sinto que a minha educação na bicicleta é meu instrumento de segurança. A maioria dos motoristas percebe e respeita.” Em cidades grandes, a bicicleta já é mais veloz que um carro. Os paulistanos atrás do volante trafegam a 7,6 quilômetros por hora entre 17 e 20 horas. Um ciclista cauteloso circula a 14 km/h, podendo atingir 20 km/h – exatamente a velocidade de um automóvel no horário da manhã. Esses dados medidos pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo sugerem uma perspectiva diferente para os centros urbanos, mas já conhecida por milhões de brasileiros de municípios menores. Andar de bicicleta é um meio de transporte eficiente. Sem contar que representa uma ótima oportunidade de praticar exercício físico e afastar a ameaça da obesidade: é possível queimar em média 155 calorias pedalando durante meia hora.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30,6 milhões de brasileiros empregados, um terço da força braçal, se desloca para o trabalho a pé ou de bicicleta. Quando o IBGE apresentou esses dados pela última vez, em 2008, a regra era a de que, quanto mais jovem ou mais pobre for o trabalhador, mais ele usaria a bicicleta. De lá para cá, contudo, a história ganhou novos contornos. “Grande parte da comunidade da periferia que usava a bicicleta passou a comprar carros e motos”, explica José Lobo, diretor da ONG Transporte Ativo. “E o governo, com os incentivos fiscais, favorece ainda mais a presença de veículos nas ruas.”
Para complicar essa história, a maioria dos modelos urbanísticos no país priorizou o automóvel em detrimento dos transportes de massa. Assim, qualquer cidade de médio porte já sente o drama de ter mais carros trafegando nas ruas. Nesse contexto, a boa e velha bicicleta, inventada por Leonardo da Vinci por volta de 1490, ressurge como uma solução para devolver a mobilidade das pessoas.
Transporte consciente
Wagner Hirata, 33 anos, também usa a bicicleta para trabalhar em São Paulo. Para percorrer os sete quilômetros que separam sua casa do trabalho, ele gasta cerca de 15 minutos. Se sua filha, Melissa Chiemi, 3, vai junto, demora mais tempo. “Estou sempre de olho no retrovisor, sinalizo com as mãos e até minha filha ajuda”, explica. Para ter segurança, estuda sempre os trajetos antes de levar Melissa a algum lugar diferente. Nunca tomou um tombo com a menina. “Tem gente que não acredita e diz que posso pôr minha vida em risco, mas não tenho direito de colocar a dela. A verdadeira ameaça não sou eu, mas os outros.”
Melissa, que sempre distribui sorrisos os passeios
Se você pretende se aventurar pelas ruas com seu pequeno, é prudente seguir algumas recomendações que, embora não anulem, reduzem significativamente o risco no trânsito. As cadeirinhas para transportar crianças são itens de segurança e podem ser de dois tipos: dianteiros ou traseiros. Ciclistas experientes recomendam a cadeirinha na parte de trás, porque deixa claro aos motoristas que há uma criança sendo transportada, além da vantagem de evitar que ela desestabilize a condução da bicicleta. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que também regulamenta a atividade, não proíbe a garupa, mas não custa alertar que a probabilidade de gerar um acidente nessas condições é maior.
Para as famílias que têm crianças maiores, que já andam com a própria bicicleta, os cicloativistas recomendam que elas só trafeguem em ciclovias e ciclofaixas, evitando o trânsito compartilhado. Outra sugestão é que os pais andem lado a lado com a criança ou atrás dela, mas sem a perder de vista. Nunca é demais lembrar que o CTB considera infração média deixar de guardar distância lateral de 1,5 metro de um ciclista e que as crianças devem sempre usar todo o aparato de segurança, que inclui capacete, joelheira e cotoveleira, seja na garupa ou na direção.
Em ascensão
Ainda que mal compreendido, o ciclismo ganha visibilidade por meio de uma parcela de jovens trabalhadores que trocou o carro pela bicicleta. Eles se vestem com roupas sociais ou descoladas, em nada parecidas com o estilo jogging de um ciclista nato. Acreditam que a sustentabilidade também passa pelas pedaladas. “Eles ganharam os carros dos pais, mas preferiram deixar a chave em casa para pegar a bicicleta”, afirma Marcos de Souza, editor do site Mobilize Brasil.
Nos quatro cantos do planeta, há diversos encontros de ciclistas realizados na última sexta-feira do mês. Eles fazem parte da Bicicletada (Critical Mass, em inglês), que tem como lema “a rua é de todos”. “A bicicleta funciona como ícone da negação do automóvel”, acrescenta Souza, já que o veículo de duas rodas se caracteriza pelo uso racional do espaço, pela segurança urbana, e por se integrar de forma menos conflituosa com a cidade. Ou seja, o ciclismo se tornou uma causa e, de quebra, contribui com a gestão ambiental: ao pedalar e manter o carro na garagem, o ciclista deixa de emitir aproximadamente 120 gramas de CO2 por quilômetro.
Se no Brasil ainda é difícil presenciar ciclistas como Silvia e Wagner transportando seus filhos na garupa, indo ao trabalho ou à escola, em outros países essa é uma cena muito comum. Tome o exemplo da Holanda. Desde os anos 1950, o poder público já planejava um sistema cicloviário para as principais cidades. Em meados dos anos 1970, uma série de atropelamentos de pedestres e crianças mobilizou a sociedade contra os carros. Centros informais de aluguel de bicicletas incentivam o uso massivo desse meio de transporte. Em pouco tempo, Amsterdã ganhava uma nova vocação, que não tardou a se espalhar para outras cidades europeias.
Conquista do espaço
Nas últimas eleições municipais brasileiras não faltaram prefeitos pedalando e dizendo que vão criar ciclovias. Em São Paulo, a promessa é criar 400 quilômetros de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas (ruas com trânsito compartilhado entre bicicletas e automóveis). “Mas a localização dessas vias têm de levar em conta a dinâmica social e geográfica da região”, cobra Thiago Benicchio, diretor da Ciclocidade, ONG de cicloativistas (SP). A carta compromisso assinada pelo então candidato Fernando Haddad, hoje prefeito, foi replicada em outras capitais, como Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus e Curitiba. “Até o início dos anos 2000, a bicicleta era invisível, não fazia parte das políticas públicas. Agora é a vez de tornar a cidade mais amigável.”
O Código Brasileiro de Trânsito reconhece a bicicleta como um veículo e ela deve se integrar ao trânsito. Portanto, o ideal é que ela trafegue no asfalto. Segundo essa norma, cabem aos veículos de maior porte zelar pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e todos pela preservação dos pedestres. A magrela ocupa 10% do espaço de um carro ao estacionar ou circular.
O Rio de Janeiro, cidade pioneira no país na implantação de vias exclusivas para as bicicletas em sua malha urbana, pretende dobrar os atuais 150 quilômetros de ciclovias, ciclofaixas e pistas compartilhadas em quatro anos. Serve de exemplo a operação urbana Porto Maravilha, na região portuária do Rio. O Elevado da Perimetral será inteiramente demolido e em seu lugar serão construídos 30 quilômetros de vias para um Veículo Leve sobre Trilhos e 17 quilômetros em ciclovias e ruas para passagem exclusiva de pedestres e bicicletas.
Em Porto Alegre, a meta é expandir a atual malha de 14 quilômetros para 50 quilômetros até o pontapé inicial da Copa do Mundo, no próximo ano. Na região metropolitana do Recife, estão previstos mais de 100 quilômetros de ciclovias. O programa Pedala PE prevê 75% de incentivo fiscal para as fábricas de bicicletas que se instalarem no estado pernambucano, a construção de 150 bicicletários nos espaços públicos de lazer e o reconhecimento das empresas que incentivam o uso da bicicleta por seus funcionários.
A Lei da Mobilidade Urbana, de 2012, estabeleceu que até 2015 todas as cidades com mais de 20 mil habitantes terão de elaborar um Plano Diretor de Mobilidade Urbana. É uma das diretrizes dessa política favorecer modos sustentáveis de locomoção, incluindo os deslocamentos a pé ou de bicicleta. Tamanha mobilização da sociedade e do poder público tem colhido bons resultados. Segundo o Ministério das Cidades, as ciclovias e ciclofaixas aumentaram de 350 quilômetros em 1999, para 2.506 quilômetros em 2007 e a atual estimativa é de que existam em torno de 5.000 quilômetros de vias exclusivas para esse meio de transporte.
Transpor obstáculos
Dentre os empecilhos para que mais cidadãos decidam aderir ao ciclismo, está o fato de que o Brasil possui a bicicleta mais cara do mundo, de acordo com um levantamento da Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Importação e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios (Abradibi). Em países como Estados Unidos e Colômbia, os fabricantes não pagam imposto, mas aqui a carga tributária equivale a 40% do produto final. Para se ter uma ideia, o preço de uma bicicleta pode chegar a R$ 15 mil! Nos Estados Unidos, dá para adquirir o modelo mais completo por US$ 2.500, o equivalente a cerca de R$ 5.200. Como a isenção fiscal é concentrada nas bicicletas fabricadas na Zona Franca de Manaus, as demais regiões não são beneficiadas e todo o resto da cadeia fica prejudicada, conforme critica Odilon Figueiredo, diretor técnico da Abradibi. Já em termos de fabricação, o Brasil está bem colocado entre os cinco maiores produtores do mundo, com 7 milhões de bicicletas por ano.
Figueiredo também chama a atenção para a importância de resgatar o valor das pedaladas como meio de transporte: “Se não criarmos uma nova geração dizendo que a bicicleta é importante, as crianças vão crescer lembrando dela apenas como um brinquedo”, reflete.
Ricardo Santos está fazendo a parte dele como cidadão. Sócio de uma empresa de marketing esportivo, em São Paulo, decidiu abandonar o automóvel depois que descobriu que as despesas com ele eram de cerca de 1 mil reais por mês. Primeiro, optou pelo táxi. Mas era um carro, de qualquer maneira. Num certo dia, ao ver da janela o trânsito parado, decidiu encher o pneu de uma bicicleta encostada no escritório. Sentiu-se livre numa cidade congestionada. Investiu num modelo dobrável e, com ele, passou a levar o filho Felipe para a escola. Enquanto ele fazia uma pesquisa a respeito de fabricantes de bicicletas, acabou se aproximando de uma empresa e se tornou representante dela no Brasil.
Felipe, que hoje está com 4 anos, ganhou neste ano a companhia da irmã, Malu, de 3. Santos fez nova pesquisa e descobriu uma bicicleta importada especial para cargas, que permitia carregar os dois filhos ao mesmo tempo. As cadeirinhas ficam posicionadas atrás dele e representam quase 50 quilos a mais de peso, o que aumenta muito a dificuldade na hora de conduzir o veículo. Antes de começar a levar os filhos na escola, Santos praticou bastante até se sentir seguro. Para ele, seu uso da bicicleta tem a ver com praticidade, que será o verdadeiro motivador para que mais pessoas adotem esse veículo. “Sou fruto do que muitos cicloativistas buscam, uma pessoa que saiu da inércia do carro para o movimento do pedal. E meus filhos têm isso como exemplo.”
Pedaladas contra doenças
Além de economizar tempo no trânsito e contribuir para o meio ambiente, andar de bicicleta é um exercício aeróbico excelente, capaz de afastar problemas como a obesidade. Para as crianças, um passeio de uma hora no parque três vezes por semana já cumpre a recomendação da Organização Mundial de Saúde de realizar exercícios moderados a vigorosos com o objetivo de manter o peso, a saúde músculo esquelética e a capacidade cardiovascular. Aderir à bike também traz inúmeras vantagens aos pais, pois diminui os riscos de desenvolver problemas como pressão alta, infarto, derrame, depressão, diabete tipo 2 e até câncer de mama e intestino. E meia horinha diária já traz todos esses benefícios! E não custa lembrar que ser sedentário a semana inteira e exagerar no final de semana promove sobrecarga cardiorrespiratória. Portanto, comece aos poucos!